A Lei 12.965/2014 (Marco Civil da Internet – MCI), completou em abril, seis anos da sanção pela presidenta Dilma Rousseff (PT). Depois de um processo prévio de discussão e uma tramitação de quase três anos no Congresso, a lei se tornou um exemplo global de uma legislação voltada a direitos dos usuários. Mas a legislação, que possui um aspecto principiológico, ainda não tem interpretação consensual em muitos de seus aspectos. TELETIME conversou com especialistas, representantes da sociedade civil e setor empresarial para saber quais as dificuldades de implementação do MCI, o que a legislação assegurou e os desafios que precisam ser superados para a sua plena eficácia e para sua efetividade frente a outros modelos de exploração da Internet que não estavam no radar do Legislador quando a proposta foi discutida no Congresso.
Laura Tresca, coordenadora de direitos digitais da organização Artigo 19, lembra que, quando aprovado, o MCI gerou expectativa porque, pela primeira vez, estava prevista em lei a proteção dos direitos dos usuários da Internet no Brasil. Mas ela reconhece que isso não acontece de forma instantânea. “Há inúmeros processos políticos, jurídicos e institucionais que levam à respectiva concretização desses princípios elencados no Marco Civil”.
Ela cita que uma das dificuldades enfrentadas para uma efetiva implementação do MCI envolve a aplicação da lei. “No Poder Judiciário, as decisões eventualmente demonstram que falta um maior entendimento de como funciona a própria estrutura da Internet e, por vezes, essas decisões utilizam como embasamento outras legislações que não o Marco Civil da Internet, mesmo ele sendo a legislação adequada a determinados casos”, conta Tresca.
Zero-rating: debate ainda aberto
Uma das questões até hoje polêmicas relacionadas ao Maco Civil é como enquadrar modelos como o zero-rating, em que o tráfego de dados é custeado por alguém e sai de graça para o consumidor final. Há quem veja nesta prática infração à neutralidade, um dos pilares do Marco Civil, mas de outro há quem defenda o modelo pelo benefício que pode trazer a quem não tem condição de pagar pelo acesso, além de ser um modelo comercial previsto na redação do MCI.
Para Bia Barbosa, do Coletivo Intervozes, uma das entidades que integra a Coalizão Direitos na Rede (CDR), as dificuldades para uma efetiva implementação do MCI envolvem a capacidade de fiscalização do zero-rating (tráfego sem consumo da franquia), que veio somente dois anos depois da lei em vigor. “Apesar de a lei ter sido aprovada em 2014, somente em 2016, com o Decreto 8771/2016 que regulamentou o MCI, é que tivemos uma clareza sobre a fiscalização dessa prática. E essa lacuna possibilitou às empresas a implementação dessa prática comercial, sem uma fiscalização adequada”.
Outro ponto destacado por Barbosa envolve o arranjo institucional de fiscalização dos princípios contidos na lei. É um tripé formado pelo Cade, Senacom e Anatel, com o CGI.Br de apoio, que deveriam fiscalizar se os direitos dos usuários contidos no MCI estavam sendo respeitados. “A Senacom passou por um processo de enfraquecimento ao logos dos últimos anos e dentro da Anatel há setores que entendem que o zero-rating não é proibido pela lei”, declara Barbosa.
Enrico Romanielo e Tomas Paiva, sócios da área de regulação e concorrência da Mudie e Advogados, também entendem que o Marco Civil da Internet é uma norma pricipiológica fruto de amplos debates e que garante uma série de liberdades, dentre elas, a liberdade econômica. Para os advogados, o principal desafio para os próximos anos é responder qual será a capacidade do Poder Público (incluindo o Poder Judiciário) de interpretá-lo como tal. Eles destacam que a legislação não é sobre a legalidade do zero-rating, pois a prática comercial, segundo os advogados, não é vedada no MCI.
Romanielo e Paiva entendem que, justamente pelo fato de ser uma legislação pró-liberdades, o zero-rating não é proibido pelo MCI porque a prática comercial não envolve discriminações técnicas, mas sim diferenciações econômicas. “O debate precisou escapar da regra estritamente técnica e chamar para uma leitura do MCI a partir de seus princípios, dentre os quais os que prestigiam (i) a liberdade dos modelos de negócios promovidos na Internet, (ii) a livre iniciativa e (iii) a livre concorrência”, dizem os advogados.
Ainda sobre a questão, os advogados citam que a conclusão do Cade sobre as ofertas zero-rating tanto sob o ponto de vista concorrencial, conduzida pelo órgão, como sob o ponto de vista da neutralidade de rede, conduzida pela Anatel e pelo MCTIC (no âmbito da investigação do Cade), foi fundamentada por uma análise empírica, principiológica e econômica, confirmando que a legislação não proíbe novos modelos de negócios geradores de bem-estar, e prestigia a liberdade. “Em nossa visão, esse posicionamento foi acertado, e possibilitou uma ampliação relevante de ofertas, incremento na rivalidade entre diversos playerse benefícios significativos para os usuários de todos os serviços envolvidos”, afirmam.
Rafael Pellon, advogado especialista em direitos digitais e sócio do Pellon de Lima Advogados, diz que a questão do zero-rating poderia ter ficado mais clara, mas também entende que a redação do MCI não o proíbe, já que não há degradação de tráfego, apenas ausência de cobrança financeira. “Se houvesse a priorização de tráfego ou a degradação de tráfego aí sim o modelo de zero-rating teria que ser revisto. A questão também foi bem analisada pelo Cade do ponto de vista concorrencial e suas recomendações foram adotadas pelos players brasileiros”, argumenta.
A Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação (Brasscom), defende a neutralidade de rede como forma de assegurar a liberdade de expressão e de informação e a possibilidade de gestão de tráfego de dados de forma razoável e não discriminatória, que permitam a oferta de novos negócios. “Nossa posição desde então tem sido pela liberdade dos modelos de negócios na internet, inclusive com a possibilidade de oferta de negócios alternativos pela disponibilização de serviços de conexão com tráfego subsidiado”.
MCI e a Internet no Brasil
“A grande mudança acarretada pelo Marco Civil da Internet, sem dúvidas, foi o respaldo que ele trouxe à prevalência da garantia das liberdades civis na Internet em contraposição às tentativas de regulamentação com viés criminal de condutas na rede. Embora projetos com vieses discriminatórios persistam e estejam constantemente ameaçando a liberdade no ambiente online, essa garantia é a principal marca do MCI no Brasil”, destaca Laura Tresca.
A responsabilização das plataformas/intermediários foi outro aspecto que mudou com a chegada do MCI no mundo jurídico brasileiro, diz a coordenadora do Artigo 19. “Atualmente, os conteúdos na internet são removidos tanto em decorrência da violação dos termos das plataformas quanto em decorrência da respectiva categorização como pornografia de vingança ou decisões judiciais. No entanto, aquela prática que consistia na necessidade de enviar uma notificação para o provedor, solicitando a retirada de determinado conteúdo [notice and take down] e mencionando a possibilidade de se recorrer ao Judiciário caiu por terra – o que é certamente uma vitória para a liberdade de expressão no Brasil, tendo em vista que a necessidade desse tipo de procedimento consistia então uma base muito frágil para a requisição de remoção de conteúdo de maneira aleatória”, diz a coordenadora do Artigo 19.
Leonardo Palhares, presidente da Câmara-e.net, aponta que a aprovação do Marco Civil e todo o seu processo de construção serviram para consolidar um entendimento que estava sob risco e dependia de decisões dos magistrados. “O MCI veio para consolidar o entendimento de uma internet livre e bem orientada no Brasil. O Brasil na internet é um dos cinco maiores em várias categorias: volume de transações realizadas, de usuários etc. O MCI também veio para conscientizar o cidadão sobre o uso dessa tecnologia, trazendo para a cabeça do internauta a sua posição de agente nesse complexo ecossistema”, diz o advogado.
Palhares também ressalta que a legislação permitiu trazer a ideia de direitos para a sociedade e a potencializou economicamente. “A liberdade de expressão ganhou novos contornos com a sanção do MCI. Nestes seis anos, esse ecossistema digital inteiro aflorou. Tivemos a chegada de empresas estrangeiras no Brasil, o que é fruto da segurança jurídica que a lei trouxe. Tivemos um movimento forte de startups com a solidificação dessas empresas. O marketplace ganhou segurança jurídica. Antes do MCI, havia muita insegurança sobre como deveria operacionalizar este segmento no Brasil”, destaca o advogado.
O presidente da Câmara-e.net diz que o artigo 19 da lei é sua “espinha dorsal”, pois assegura a liberdade de expressão e deixa claro o papel do provedor de aplicação na retirada de conteúdos. Ele diz que se o artigo deixar de existir, o MCI coloca para as plataformas digitais a tarefa de ser o censor da internet. “Isso coloca para as plataformas uma função que afronta a liberdade de expressão. A gente perde agilidade e a rapidez da internet se tirar qualquer preceito apontado no artigo 19. Vamos atribuir para as plataformas a capacidade de filtrar o que as pessoas devem dizer? Isso não é certo”, diz.
Rafael Pellon por sua vez, lembra que o modelo de retirada de conteúdos proposto no MCI é baseado em experiências internacionais e preserva a integridade da rede como um todo, impedindo bloqueios genéricos ou massivos, obrigando a identificação de links específicos que violem direitos de terceiros e criadores de conteúdos. “Isso era trabalhoso quando o MCI foi lançado, mas nos últimos anos as tecnologias de rastreamento e localização de conteúdos indevidos melhoraram muito, há diversas formas de localizar e apontar conteúdos indevidos automaticamente com ferramentas de software, além daquelas empregadas pelas maiores plataformas e redes sociais do mercado, o que também facilitou muito o combate a conteúdos ilícitos”, diz o advogado.
Privacidade: o próximo desafio
Bia Barbosa também reconhece que o MCI trouxe uma garantia maior à liberdade de expressão na Internet no Brasil, a partir do momento que traz as regras de responsabilidade das plataformas/intermediários quando o tema é a retirada de conteúdos. Mas a representante do Coletivo Intervozes enxerga que hoje o desafio maior está em encontrar formas de equilibrar estas garantias com o combate à desinformação, as fake news, porque nestes seis anos o poder dessas plataformas aumentou. “Noticia falsa é objeto de uma série de projetos de lei para obrigar as plataformas a serem responsáveis por filtrar esses conteúdos. Na avaliação da Coalizão Direitos na Rede (CDR), é fundamental manter o que diz o art. 19 da lei, o que faz com que o combate à desinformação trilhe um outro caminho, que não a alteração deste artigo”, argumenta Barbosa.
Leonardo Palhares também segue entendimento semelhante. “Fake news é um problema que deve ser resolvido sem mudar o MCI. E a solução para este problema deve ser pensada de maneira coletiva e adequada e não alterando o artigo 19”, diz o presidente da Câmara-e.net
Sobre este assunto, Laura Tresca lembra que tramita no Supremo Tribunal Federal uma Ação que questiona a constitucionalidade deste artigo. “No nosso entendimento, trata-se de um artigo certamente constitucional, por proteger a liberdade de expressão, um dos direitos fundamentais reconhecidos na nossa Constituição Federal. Então certamente a superação desse questionamento é absolutamente necessária para garantir a eficácia do MCI”, diz Tresca.
Tresca também destaca que o acesso à Internet é outro desafio a ser superado, já que na legislação, o serviço de acesso à banda larga é tipificado como serviço essencial para o exercício da cidadania. “Observamos que no contexto da crise do covid-19 a falta de acesso à internet está sendo um empecilho com relação a aspectos como o exercício do trabalho, da educação, do acesso a informações sobre saúde. O acesso à internet funciona inclusive como um um instrumento para combater à desinformação. Assim, esse é um desafio que precisa ser enfrentado urgentemente com políticas públicas”, afirma Laura Tresca.
Já os advogados Enrico Romanielo e Tomas Paiva apontam que o desafio posto para o Marco Civil da Internet no futuro está na convivência com a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/2018 – LGPD). “Um dos pilares do MCI é justamente a proteção de dados pessoais na Internet e, diferentemente da LGPD, o legislador optou por uma abordagem a partir do consentimento. Pacificar possíveis tensões entre o MCI e a LGPD será uma das primeiras atribuições da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD)”, dizem os advogados sócios da Mundie e Advogados.
Rafael Pellon aponta problema semelhante, mas com o Código de Defesa do Consumidor (CDC). “Como o MCI resistirá a questionamentos sobre sua abrangência quando confrontado com outras leis como o Código de Defesa do Consumidor, que está completando 30 anos, já que o MCI ganha relevância conforme o mundo se digitaliza? Nesse sentido, o STF terá que se debruçar em processos que estão na sua alçada para esclarecer sobre a prevalência do CDC ou MCI em questões de responsabilidade civil das plataformas de e-commerce e nas questões de retirada de conteúdos, temas que saudavelmente devem ser revistos conforme a dinâmica das relações online amadurece”, diz.
Novos modelos
A Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação (Brasscom), reconhece que edição do Marco Civil da Internet foi um passo importante para o avanço institucional do Brasil na garantia de direitos fundamentais como o acesso à informação e à Internet, na inclusão digital da população brasileira e no desenvolvimento econômico do país. A entidade acredita no ambiente digital como motor de inovação e bem-estar. Contudo, pontua que um dos desafios envolvendo a internet no Brasil está na necessidade de dar mais segurança jurídica a investimentos em tecnologias de transformação digital, a exemplo da tributação do licenciamento de softwares e do streaming envoltos em conflito de competência tributária entre Estados e municípios.
Para o setor de telecomunicações, há também questões que ainda não estão de todo respondidas. Por exemplo, como será a conciliação entre os dispositivos do Marco Civil e novos modelos de conectividade, como a Internet das Coisas e as conexões criadas pelas redes de 5G, cujo modelo tecnológico prevê a oferta de conectividade discriminada por níveis diferentes de qualidade para plicações diferentes. Alguns especialistas enxergam que o próprio Marco Civil, ao prever o desenvolvimento de modelos de negócio alternativos, dá guarida a conectividades diferenciadas, como expressou nesta entrevista a TELETIME o presidente da Anatel, Leonardo Euler.
O SindiTelebrasil, sindicato que representa as grandes empresas que atuam no setor de telecomunicações, enviou nota a este noticiário lembrando que o MCI estabelece princípios, fundamentos, direitos e obrigações aos agentes que atuam na Internet, o que abrange também a atuação do setor empresarial. A entidade empresarial diz que todas as suas associadas atuam conforme as responsabilidades previstas na legislação. A entidade também diz que o MCI e seu Decreto regulamentador trouxeram segurança jurídica ao definir os papéis e responsabilidades de cada agente que atua na Internet e que todas as suas empresas associadas obedecem plenamente aos condicionantes de aplicação, alcance e regras de exceções da legislação, especialmente os que envolvem a Neutralidade de Rede. (Colaborou Samuel Possebon).
Fonte: TeleTime
https://teletime.com.br/30/04/2020/marco-civil-completa-seis-anos-com-novos-desafios-a-serem-superados/