Entidades ligadas aos interesses da sociedade civil consideram um retrocesso a nomeação de três militares, enquanto as associações empresariais consideram positiva as nomeações para dar prosseguimento à constituição da ANPD
O perfil dos nomes indicados pelo governo para compor o Conselho Diretor da Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pessoais dividiu as opiniões das principais entidades relacionadas de alguma forma ao tema. As mais ligadas aos interesses da sociedade civil consideram um retrocesso a nomeação de três militares, sobretudo aos ligados à área de segurança institucional, para um órgão que deveria zelar pela proteção dos dados do cidadão e não pela vigilância.
Já as entidades empresariais consideram positiva a nomeação para dar continuidade ao processo de constituição da ANPD e até acreditam que a nomeação de militares com mandatos longos pode reduzir interferências políticas.
O governo anunciou ontem os nomes do coronel Waldemar Gonçalves Ortunho Júnior como diretor-presidente, para um mandato de 6 anos; o coronel Arthur Pereira Sabbat, diretor com mandato de 5 anos; e o tenente coronel Joacil Basilio Rael, diretor com mandato de quatro anos. Entre os civis, estão a advogada Nairane Farias Rabello Leitão, diretora com mandato de 3 anos; e Miriam Wimmer, diretora com mandato de dois anos.
A Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa, divulgou levantamento para analisar o perfil dos membros de Autoridades de Proteção de Dados Pessoais em 20 países economicamente avançados. O estudo concluiu que, em comparação com outros países, apenas China e Rússia apresentam militares na composição de suas autoridades. O fato de o Brasil ter indicado três militares de uma só vez também representa um movimento inédito em comparação aos vinte países economicamente avançados do mundo.
“A principal questão não é a indicação em si, mas todo o contexto em que ela está inserida, de crescente vigilância e o que chamamos de tecno-autoritarismo. Isso é exemplificado pelas disputas no Supremo Tribunal Federal que reconheceram inconstitucionalidade de duplicação de bases de dados para a Abin e pela circulação de dossiês antifascistas dentro do Ministério da Justiça, que demonstram um apetite autoritário baseado no uso de dados pessoais dos cidadãos. Existe um problema mais amplo de uma tendência autoritária no Estado brasileiro”, diz Mariana Rielli, representante da Data Privacy.
Para ela, há uma confusão frequente a partir da criação de uma dicotomia absoluta e excludente entre proteção de dados pessoais e atividades de inteligência e segurança/defesa nacional, o que é competência e pauta dos militares. Ela diz ser importante que a sua presença na ANPD não signifique um cenário menos favorável à proteção de dados pessoais com o aprofundamento dessa questão.
“Com o fim de garantir, e até intensificar, iniciativas na área da inteligência e da vigilância (o que implica o tratamento de dados pessoais de potencialmente milhões de brasileiros) pode-se deslocar o equilíbrio entre esses dois interesses de forma desproporcional. A ANPD deve fazer justamente o contrário, ou seja, proteger direitos e garantir um ecossistema de proteção de dados equilibrado”, diz Mariana.
VIGILANTISMO
Para Flávia Lefévre, integrante do Intervozes e da Coalizão Direitos na Rede, apesar das lutas pela constituição e aprovação da LGPD, desde o governo Temer houve uma trajetória de enfraquecimento do projeto. Por meio de Medida Provisória, Temer colocou a ANPD para dentro da estrutura da presidência da República, o que para ela configura um conflito de interesse claro, pois quem mais coleta e trata dados do cidadão é o governo. E o governo Bolsonaro instituiu, por meio de decreto, a possibilidade de nomeação de militares.
“Não tem surpresa, foi uma trajetória que começou com a captura do órgão regulador e fiscalizador para dentro e pelo controle do executivo federal, um decreto que coloca nas mãos do presidente o poder de aprovar os representantes da sociedade civil que vai compor conselho. Um dos indicados é do Gabinete de Segurança Institucional, órgão de controle e vigilância”, alerta Flávia. Ela ressalta ainda que enquanto a Miriam Wimmer tem mandato de dois anos, os militares têm de quatro a seis anos.
“O que preocupa é que, se não houvesse a Lei, as questões seriam tratadas no Judiciário. Agora, com a LGPD, quem vai interpretar os termos da lei são esses diretores indicados. Pior do que não ter lei e ficar sujeito ao judiciário num cenário de insegurança, é ter a estruturação inicial desse órgão tão importante nas mãos de pessoas que representam interesses de vigilância. Em vez de proteção de dados pessoais, será vigilância de dados pessoais”, critica Flávia.
CONTRAPONTO
Para Fabro Steibel, direto-executivo do ITS, é preciso, porém, realçar o perfil de Miriam Wimmer, que tem muito conhecimento de governo e de políticas de dados abertos. Para ele, a indicação também revela a preocupação do governo para que os cargos não sejam politizados, partindo-se do pressuposto de que na visão do governo, os militares não são politizados.
“Mas mostra o exagero de pensar proteção de dados como soberania nacional. É uma agenda importante, mas que deixa de lado a economia e a inovação”, diz Steibel. Para ele, o debate de aprovação da lei foi multissetorial, e essa decisão de ter foco nos militares vai contra o debate que criou a lei. “Isso vai criar força para que a agenda de consumo e segurança de dados seja concorrente com outros órgãos, como Ministério Público, e a agenda de economia do próprio governo será esquecida”, analisa Steibel.
SETOR EMPRESARIAL
A Brasscom havia sugerido cinco nomes ontem, entre os quais o da própria Míriam Wimmer e do coronel Arthur Pereira Sabat, confirmados pelo governo. Sergio Paulo Gallindo, presidente-executivo da Brasscom, diz que deve-se festejar o fato de o governo ter finalmente indicado os nomes.
“A institucionalização da proteção de dados no Brasil depende, fundamentalmente, da atuação da ANPD, já que a lei foi constituída em torno de uma autoridade. Nosso objetivo com as indicações era tangibilizar os atributos que defendemos desde o ano passado para uma ANPD que fosse eclética e tecnicamente hábil. Dois nomes estão na listas e os outros parecem qualificados. E nós vamos trabalhar com quem for aprovado pelo Senado”, explica Galindo.
Para Rodolfo Fücher, presidente da ABES, a indicação é positiva para o mercado. Havia uma demanda para que se indicasse os nomes o quanto antes para que eles passassem pela sabatina do Senado e assumissem. Na sua avaliação há uma diversidade positiva, apesar de três militares, com destaque para Míriam Wimmer pela competência em estratégia digital; e para o coronel Arthur Pereira Sabat, pela experiência em segurança cibernética, ponto importante em se tratando em privacidade de dados. Assim como os outros dois militares de perfil técnico, além de uma advogada. “A segurança de dados tem de ser um fator importante. O papel da autoridade será definir melhores práticas”, defende.
A Assespro considera positiva a indicação dos membros do ANPD, lembrando que os indicados deverão passar por sabatina e aprovação do Senado. Após a sua constituição e operacionalização, a ANPD deverá escolher 23 membros adicionais que comporão o Conselho de Proteção de Dados Pessoais. A entidade defende que a indicação dos representantes da sociedade civil para o Conselho Nacional de Proteção de Dados priorize a competência técnica. “É importante ter nomes que realmente conheçam o tema e possam ajudar bastante governo e a sociedade no desenvolvimento e na implantação desta lei”, afirma Italo Nogueira, presidente da Assespro Nacional.