DORA KAUFMAN

Brasil tem atualmente 250 mil vagas em aberto, ou seja, ofertas de emprego sem candidatos qualificados e esse número tende a aumentar nos próximos anos (Fonte: Brasscom); cinco em cada dez empresas industriais brasileiras enfrentam problemas com a falta de trabalhadores qualificados (Fonte: CNI).

Por outro lado, segundo o IBGE, a taxa de desemprego bateu 11% em dezembro (11,6 milhões de brasileiros, cerca de 15% da população economicamente ativa), índice subestimado porque não leva em conta os que desistiram de procurar emprego, os que estão empreendendo para subsistir — 50% do total dos empreendedores fatura aproximadamente R$ 1.000/mês, sendo que apenas 1% dos empreendedores iniciais e 3,2% dos estabelecidos faturam acima de R$ 5.000,00/mês (Fonte: GEM Brasil/2017) —, sem contar os 41,1% do total da população ocupada que trabalha na informalidade (sem carteira assinada). É fato que as novas tecnologias estão gerando, simultaneamente, desemprego e oferta de vagas em aberto, e desequilíbrio salarial: salários crescentes para funções qualificadas e descrentes para as demais funções.

A combinação entre os avanços da inteligência artificial (IA) e da robótica, se por um lado acelera a produtividade e o crescimento – redução de custos e aumento da eficiência —, por outro tem o potencial de gerar desemprego e desigualdade (produz efeito negativo sobre a renda ao aumentar a competição pelos empregos remanescentes). Como alerta a Organização Internacional do Trabalho (OIT), no curto-médio prazo as funções mais ameaçadas são as de menor qualificação, em geral, exercidas pela população de baixa e média renda (em maior número).

A consultoria McKinsey Digital (“The impact of automation on employment for women and minorities”, 2019) atesta a vulnerabilidade, por exemplo, dos trabalhadores afro-americanos concentrados nas atividades mais propensas a automação: super representados na categoria motoristas de caminhão, com 80% das horas de trabalho ameaçadas pelos caminhões autônomos (sem motoristas), e sub-representados na categoria desenvolvedores de software, com 15% de probabilidade de automação.

O desequilíbrio do mercado de trabalho deve-se, em parte, ao fato de que as novas funções não estão substituindo proporcionalmente as funções eliminadas, basicamente por duas razões: (a) é desproporcional (quantitativamente) o número de funções repetitivas/previsíveis, foco da substituição por máquinas inteligentes, e as novas funções ofertadas; o estímulo à transformação digital é reduzir custos e aumentar a eficiência, processos intensivos em tecnologia (e não em mão-de-obra), e (b) é um equívoco considerar as habilidades listadas pelos relatórios de consultorias, e enfatizadas por muitos “especialistas” – raciocínio lógico, empatia, pensamento crítico, compreensão de leitura, argumentação, comunicação clara e persuasiva, discernimento, bom senso, capacidade de tomar decisão, aprendizagem ativa, fluência de ideias, originalidade – como inerentes aos seres humanos; elas são potencialmente habilidades humanas, representam uma potencial vantagem comparativa dos trabalhadores humanos. Para florescerem, contudo, dependem de condições apropriadas, e essas condições apropriadas não estão disponíveis para a maioria da população nos países desenvolvidos e, particularmente, nos países em desenvolvimento (responda sinceramente: você possui todas essas “habilidades humanas”? quantas pessoas você conhece que as possuem?).
Os relatórios internacionais, frequentemente citados como fontes, devem ser lidos com cautela. O relatório de janeiro de 2020, por exemplo, do Fórum Econômico Mundial lista várias profissões como novas quando apenas receberam uma nova nomenclatura, e outras requerem as “famosas habilidades humanas”. O relatório projeta que até 2022, 37% das oportunidades estarão na Economia do Cuidado, ou seja, “cuidadores”: a função que mais cresce atualmente nos EUA – longevidade da população, mudança na estrutura familiar, dentre outros fatores – , mas apresenta simultaneamente uma curva declinante de remuneração. As demais funções com altas taxas de crescimento incluem especialistas em IA, cientistas de dados, engenheiros de computação, analista de dados; e as baixas taxas de crescimento incluem técnicos e assistentes em geral. Os autores, inclusive, relativizam as próprias projeções: “o crescimento e a escala absoluta de várias profissões serão determinadas de maneira distinta pelas atuais escolhas e investimentos feitos pelos governos”.
No Brasil, a precariedade do ensino fundamental, perpetuada na baixa qualidade da maioria dos cursos superiores, é uma barreira à formação de profissionais adequados ao mercado de trabalho do século XXI. Abstraindo as excessões, a mobilidade no emprego é prerrogativa da elite, com acesso à formação e não apenas à treinamento. Ou seja, quem “se salva” são os profissionais de alta qualificação, que representam menos de 1% da população brasileira. Segundo o FMI (IMF Working Paper: Automation, Skills and the Future of Work, dez/2019), o grau de preocupação com a ameaça tecnológica aos empregos, não por acaso, está correlacionada aos níveis de educação e ao acesso à informação.

Até que provem o contrário com dados consistentes, continuo convencida de que o impacto no mercado de trabalho é um dos efeitos sociais mais perversos das tecnologias digitais. As empresas de tecnologia negam as evidências temerosas de serem responsabilizadas, os relatórios de consultorias e/ou organismos internacionais, se lidos atentamente, não são conclusivos. O desafio é que a construção de um futuro promissor depende de política pública, que por sua vez depende de um Estado competente e saudável, com capacidade de promover ações efetivas e coordenadas em larga escala, de formar ecossistemas com o setor público, as universidades/centros de pesquisa, e os investidores (e não apenas criar arcabouço regulatório). Sem política pública, dificilmente o Brasil entrará efetivamente no século XXI.

*Dora Kaufman é pós-Doutora COPPE-UFRJ (2017) e TIDD PUC-SP (2019), Doutora ECA-USP com período na Université Paris – Sorbonne IV. Autora dos livros “O Despertar de Gulliver: os desafios das empresas nas redes digitais” (2017), e “A inteligência artificial irá suplantar a inteligência humana?” (2019). Professora convidada da FDC e professora PUC-SP.

 
Fonte: Época Negócios – Globo
https://epocanegocios.globo.com/colunas/IAgora/noticia/2020/03/desigualdade-crescente-no-mercado-de-trabalho.html
 

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